Era final de tarde quando Nuno chegou. Apresentou-se sereno à beira do quintal, onde eu colhia umas laranjas e limões para lhe preparar um refresco. Estava um calor abrasador, e as sombras secavam os dias.
Cumprimentei-o com entusiasmo, deixando os limões rolar até aos seus pés. Que descuidada, tanto nos gestos como nas palavras. Fico sempre assim, quando recebo um convidado especial na minha casa.
Passámos a apanhar um raminho de hortelã na varanda e seguimos até à cozinha fresca, onde lhe preparei um sumo de limão, laranja e hortelã, com bastante gelo.
Nuno na sua simplicidade aceitou mais um copo, enquanto o jantar estava a ser preparado. Falou-me um pouco de si, da sua história e das suas histórias.
" Todas as cicatrizes são troféus, representam vitórias contra o que vem de fora. Devíamos mostrá-las de cada vez que conhecemos alguém, chamo-me assim e tenho sobrevivido. Mostrar os braços, e as costas e os rasgões do espírito, contar-lhes as histórias com abundância de pormenores, o que mais possamos dizer é já supérfluo."
O meu convidado é Nuno Camarneiro, um jovem escritor natural da minha cidade, a Figueira da Foz. Licenciado em Engenharia Física, trabalhou no CERN em Genebra e concluiu um doutoramento em Ciência Aplicada ao Património Cultural em Florença. É investigador e professor, e autor do blog
Acordar Um Dia. O seu primeiro romance "No Meu Peito Não Cabem Pássaros", é um livro que me impressionou pela escrita, que já conhecia do seu blog e admirava. Uma prosa claramente poética, invulgar e poderosa. Com poetas escondidos entrelinhas, vamos decifrando pelas palavras e capítulos uma narrativa sublime. Como o próprio diz,
palavras em forma de livro, que rodeiam as vidas de Fernando Pessoa, Jorge Luís Borges e Karl (personagem de Kafka). O romance nasce da pergunta - como é que nasce um escritor? - e vagueia pelas mentes criativas destas três personagens.
" Alguns homens são de tripas e escamas, depois de amanhados ficam um pouco que não chega e mal se vê. Há outros em que tudo se aproveita, homens com segredos nas entranhas e na pele, que contam histórias sem fim. São esses os homens bons e às vezes nem homens são, mas cães ou gatos, ou crianças que brincam umas com as outras."
Houve tempo para conversas no terraço, no fim de tarde, por entre um jantar animado e simples. Peixe do nosso mar, grelhado e umas tapas para petiscar. Uma sangria fresca, que o calor ainda aperta e a garganta está seca. E um bolo de fruta para sobremesa. Um upside-down de morango e ruibarbo. Com morangos e ruibarbo da horta.
No meu peito coube o encanto e a felicidade de nos termos cruzado. No livro e no jantar.
"De novo silêncio, tudo foi já dito e entendido por um e pelo outro, agora só o vento quente e os pássaros podem acrescentar sons à tarde. É Verão e os corpos aceitam bem a quietude, os minutos não têm pressa e os dois ficam ali enquanto for necessário."
Upside-Down de Morangos e Ruibarbo
(inspirado
nesta receita)
50 gr de manteiga
1/2 chávena de açúcar mascavado claro
1 taça de morangos cortados em metades
1 chávena de ruibarbo em pedaços
2 ovos
1 chávena de açúcar
75 gr de manteiga derretida e fria
raspa de 1 limão
3/4 chávena de buttermilk*
1 e 1/2 chávena de farinha
1 e 1/2 colher (chá) de fermento
1/4 colher (chá) de bicarbonato
Preparação
Untar uma forma redonda e reservar. Pré-aquecer o forno a 180ºC.
Num tacho pequeno juntar a manteiga e o açúcar iniciais e levar ao lume a ferver uns minutos a formar um género de caramelo claro. Colocar no fundo da forma preparada e espalhar uniformemente.
Espalhar os morangos em metades e os ruibarbo em pedaços por cima do caramelo numa camada concêntrica e sem deixar espaços vazios.
Numa taça bater muito bem os ovos com o açúcar e a raspa de limão, até obter uma mistura volumosa, uns 3 minutos com a batedeira. Juntar a manteiga e o buttermilk, mexendo bem. Por fim adicionar a farinha, fermento e bicarbonato de sódio e envolver suavemente.
Colocar a massa por cima da fruta e levar ao forno até cozer (teste do palito).
Deixar o bolo arrefecer uns 10 minutos antes de o virar para um prato de servir.
Servir simples ou com uma bola de gelado de baunilha.
* Para preparar o buttermilk, adicionar uma colher de sopa de sumo de limão a 3/4 de chávena de leite e aguardar uns 15 minutos antes de utilizar.
Bom Apetite!
Com esta receita participo no projecto
"Convidei para jantar...", que decorre este mês no blog
De Cozinha em Cozinha passando pela Minha, com o tema Escritores Contemporâneos.
Nota: os excertos publicados em itálico pertencem ao livro "No Meu Peito Não Cabem Pássaros" de Nuno Camarneiro.